11.10.05

2. A cidade medieval: organização física, social e económica do espaço urbano


__ Pormenor da cidade de Lucca, Itália; nesta fotografia aérea é visível o modo como o urbanismo medieval aproveitou estruturas romanas pré-existentes, neste caso no perímetro de um antigo circo foram construídas habitações, dando origem a uma praça.
__ A paisagem urbana de San Gimignano, Itália, povoada por torres que simbolizam o poder da cidade e dos seus habitantes.

__ Cena de um mercado urbano, iluminura do livro Le chevalier errant, 1400-1405, Paris, BN.
O crescimento demográfico, associado a uma maior dinâmica comercial (visível na fundação de mercados e feiras, por exemplo), conduzem à afluência e concentração populacionais junto das muralhas das antigas cidades, sobretudo nas mais estrategicamente colocadas; surgem assim os burgos de fora (faubourg) ou arrabaldes, bairros novos onde se concentra muita população vinda dos campos, e que mais tarde serão também rodeados de muros defensivos. A muralha é o elemento que identifica a cidade e define o seu perímetro, havendo receitas de impostos destinadas à sua construção e reparação. Intramuros, a urbe organiza-se em torno da praça onde se localizava a igreja mais importante (a sé catedral, apenas em cidades com bispo, e a igreja matriz), mercados e outros edifícios de prestígio, caso dos palácios comunais e dos paços do concelho; as ruas mais importantes partiam deste centro e dirigiam-se radialmente para as portas do recinto fortificado. No urbanismo medieval encontram-se várias tipologias de plantas: a radioconcêntrica, a irregular e a regular, no caso das cidades recém fundadas. No século XIII dizia-se que "o ar da cidade liberta", ou seja, em geral as populações urbanas não estavam sujeitas ao poder arbitrário dos grandes senhores; num período de maior centralização do poder dos reis, estes concedem mais liberdades, privilégios e capacidade de auto-governação aos burgueses, dando-lhes condições para prosperarem nos seus negócios. Surgem assim instituições novas ligadas à cidade: as comunas e os concelhos, com funções políticas e administrativas; as confrarias, associações de carácter religioso que tinham objectivos assistenciais; e as corporações de ofícios, de carácter profissional, que agrupavam os elementos de uma mesma profissão, em geral distribuídos por ruas específicas.
Dois textos dos finais do século XII, de Richard Devize e Guillaume Fitz Stephen, sobre a cidade de Londres, demonstram bem as diferentes e apaixonadas reacções dos homens da época a este fenómeno novo, o crescimento urbano; o primeiro refere-se aos problemas criados pela diversidade social própria das cidades, enquanto que o segundo prefere destacar a sua vitalidade económica:
"Esta cidade não me agrada. Há pessoas de todos os géneros, vindas de todos os países possíveis; cada raça traz consigo os seus vícios e os seus costumes. Ninguém pode viver aqui sem se manchar com um qualquer delito. Os bairros estão repletos de obscenidades revoltantes. (...) Não se misturem com a gentalha das hospedarias (...). Aí, os parasitas são infinitos. Actores, bobos, jovens efeminados, mouros, aduladores, efebos, pederastas, bailarinas especializadas na dança do ventre, feiticeiros, charlatães, raparigas que cantam e dançam, extorsionários, noctívagos, magos, mimos, mendigos: eis o género de pessoas que enchem as casas. Por isso, se não quiserem conviver com malfeitores, não venham viver para Londres."
"(...) de todas as nobres cidades do mundo, Londres, trono do reino de Inglaterra, espalhou por todo o universo a sua glória, a sua riqueza e as suas mercadorias e vive de cabeça erguida. É uma cidade abençoada pelos céus; o seu clima saudável, a sua religião, a vastidão das suas fortificações, a sua posição favorável, a fama de que gozam os seus cidadãos e o decoro dos seus senhores, tudo joga em seu favor (...). Os habitantes de Londres são universalmente apreciados pela finura dos seus modos e dos seus costumes e pelas delícias da sua mesa."
Jacques Rossiaud, "O citadino e a vida na cidade", O Homem Medieval, dir. Jacques Le Goff, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 99.